quarta-feira, 20 de junho de 2012

O povo Ma’dan e a drenagem dos pântanos mesopotâmicos na primeira guerra do golfo (1991)


As planícies mesopotâmicas, localizadas entre os rios Tigre e Eufrates, no atual Iraque, são consideradas por muitos o berço da civilização. Essa região foi o centro da civilização suméria. Além disso, seu registro de ocupação humana remonta a cerca de 6.500 a.C. Foi também nessa região que ocorreu um dos maiores genocídios do século XX.
Até 1991 as planícies mesopotâmicas eram a maior área pantanosa do sudoeste da Ásia. Nessa região pantanosa vivia o povo Ma’dan, também conhecido como os “árabes do pântano”. Trata-se de um povo cuja cultura, etnia, práticas sociais e códigos de conduta descendem diretamente dos beduínos islâmicos. Suas práticas sociais, contudo, foram adaptadas à vida nos pântanos mesopotâmicos, nos quais não somente viviam em harmonia e de modo sustentável com o ambiente local, como também seus meios de vida tradicionais e suas atividades econômicas dependiam intimamente desse ecossistema. O junco que crescia na região, por exemplo, denominado por eles de qasab, era utilizado tanto para a construção de moradia, tapetes, como de embarcações para locomoção na região. A criação de gado adaptado à vida nas áreas úmidas também era uma de suas principais atividades econômicas. Além disso, apesar de reproduzirem diversas práticas do código de conduta dos beduínos árabes, tais como o dever de conceder asilo e hospedagem para visitantes, o povo Ma’dan também possuía práticas sociais únicas, que se refletia nas suas práticas religiosas, nas práticas matrimoniais e nas danças populares. Possuía também um folclore próprio e um conjunto de conhecimentos populares  que se relacionavam ao ambiente local no qual viviam. Exemplo disso é a crença em seres espirituais, semelhantes aos jinn do islamismo tradicional, mas de uma forma adaptada à vida nos pântanos, tais como a crença em anfish e afa, serpentes gigantes que viveriam no interior dos pântanos, ou a crença em Hufaidh, uma espécie de paraíso terreno que se encontraria em alguma região dos pântanos, mas que seria escondida dos homens pelos jinn, os seres espirituais. Em suma, o povo Ma’dan professava uma série de crenças ligadas ao ambiente local em que viviam que eram absolutamente únicas entre todos os outros povos árabes praticantes do islamismo.

Em 1991, contudo, esse povo – que era predominantemente xiita – se insurgiu contra o regime sunita de Saddan Hussein. A revolta foi violentamente reprimida e, logo após, uma série de políticas públicas foram levadas a cabo com a finalidade de drenar esses pântanos, tais como a construção de barragens, diques e canais. Os pântanos foram reduzidos a 7% de sua área original, a maior parte de seu território foi desertificada e seu solo se tornou salinizado e impróprio ao cultivo. A pesca e a biodiversidade local se extinguiu, inclusive as espécies arbóreas utilizadas tradicionalmente para a construção de moradias e canoas. Alguns autores indicam que, por privar todo um povo dos seus meios de vida tradicionais, essas ações produziram entre 200.000 e 400.000 deslocados. Cerca de 80.000 a 120.000 das pessoas que foram forçadas a se deslocar se tornaram refugiados no território do Irã. O povo Ma’dan, apesar de contabilizar cerca de meio milhão de indivíduos na década de 1950, em 2003 o seu número foi reduzido a 20.000. Aqueles que permaneceram na área passaram a viver em uma condição de extrema pobreza.
O povo Ma’dan representa, em minha opinião, um dos casos mais evidentes do conceito recentemente criado de refugiados ambientais. Trata-se da prova concreta de como o meio ambiente pode ser um instrumento de perseguição política e de extermínio de um grupo social. As ações do regime iraquiano violaram claramente o direito internacional humanitário, constituindo crime de genocídio. A meu ver, não há nenhum impedimento em ampliar o conceito de refugiados para englobar os indivíduos que são obrigados a migrar por desastres ambientais dessa natureza.
O direito internacional humanitário, desde e os seus primórdios, continha princípios que poderiam ser utilizados como base para a prevenção de atos como os perpetrados pelo governo iraquiano. Já desde a Declaração de São Petersburgo de 1868 – o primeito instrumento internacional a regular os meios de combate – foi estipulado que “O único objetivo legítimo que os Estados podem cumprir durante a guerra é o enfraquecimento das forças militares do inimigo”. As quatro convenções de Genebra de 1949 também vedam a destruição de propridade quando não justificada pela necessidade militar, bem como meios que causem sofrimentos ou danos a uma população de modo generalizado, em especial contra grupos étnicos ou sociais específicos, conforme estipulado em seu artigo 3° – algo que caracterizou essencialmente as ações perpetradas contra o povo Ma’dan.
Além disso, a ilegalidade das ações do governo Iraquiano decorre também de uma série de tratados por ele ratificados – que, apesar de não tratar diretamente do meio ambiente, possuem dispositivos que indiretamente vedam as ações perpetradas, devido aos seus danos humanos – tais como o Protocolo de Genebra de 1925, a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948, as quatro Convenções de Genebra de 1949, bem como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também de 1966 .
Quanto aos Pactos de 1966, os artigos 1°(2) de ambas a convenções determinam que “Em caso algum poderá privar-se um povo dos seus próprios meios de subsistência”. Bem como determina, comumente, que “Nenhuma disposição do presente Pacto deverá ser interpretada em prejuízo do direito inerente a todos os povos de gozar e utilizar plena e livremente as suas riquezas e recursos naturais” (artigos 25 e 47 dos respectivos Pactos). A ilegalidade dos atos praticados também decorre do artigo 7° do Pacto de Direitos Civis e Políticos, que prevê que ninguém poderá ser submetido a tratamento cruel, desumano ou degradante.
Além disso, uma série de tratados específicos contêm provisões que vedam esse tipo de ação, tais como os artigos 35(3) e 55 do Protocolo Adicional I, de 1977, às Convenções de Genebra de 1949 e a Convenção da ONU sobre a Proibição da Utilização de Técnicas de Modificação do Ambiente para Fins Militares ou Quaisquer Outros Fins Hostis. É interessante notar que o Iraque não havia ratificado esses últimos dois acordos na época em que os atos foram cometidos, entretanto, muitos defendem que esses artigos são igualmente obrigatórios, por se tratarem da cristalização escrita de normas já existentes do direito internacional humanitário pelo costume internacional. De fato, o costume internacional pode ser uma fonte do direito internacional caso seus dois elementos básicos sejam configurados: a prática geral e a opinio juris, como exemplificado no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Neste sentido, um dos trabalhos mais importantes acerca da vedação de modificações do meio ambiente para fins militares é a publicação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha intitulada Direito internacional humanitário costumeiro, cujo capítulo 14, regra 43, aborda as normas costumeiras internacionais relativas ao meio ambiente. A publicação se encontra disponível online em: <http://www.icrc.org/eng/assets/files/other/customary-international-humanitarian-law-i-icrc-eng.pdf>.
Pode-se citar, a título de exemplo das normas que vedam a modificação do meio ambiente para fins militares, o artigo 55º do Protocolo Adicional I de 1977 à Convenção de Genebra de 1948, que determina expressamente a necessidade de proteção do meio âmbiente no âmbito de conflitos armados, algo que tipifica claramente as ações cometidas no Iraque:
Artigo 55.º
Proteção do meio ambiente natural
1 — A guerra será conduzida de forma a proteger o meio ambiente natural contra danos extensivos, duráveis e graves. Esta protecção inclui a proibição de utilizar métodos ou meios de guerra concebidos para causar ou que se presume venham a causar tais danos ao meio ambiente natural, comprometendo, por esse facto, a saúde ou a sobrevivência da população.
2 — São proibidos os ataques contra o meio ambiente natural a título de represália.
E ainda, pode-se citar o Protocolo Adicional II de 1977, por sua vez, destinado a regular conflitos armados não-internacionais, que possui duas provisões diretamente relacionadas ao caso em tela:
Artigo 14.º
Protecção dos bens indispensáveis à sobrevivência da população civil
É proibido utilizar contra as pessoas civis a fome como método de combate. É, portanto, proibido atacar, destruir, tirar ou pôr fora de uso com essa finalidade os bens indispensáveis à sobrevivência da população civil, tais como os géneros alimentícios e as zonas agrícolas que os produzem, as colheitas, o gado, as instalações e as reservas de água potável e os trabalhos de irrigação.
Artigo 17.º
Proibição das deslocações forçadas
1 — A deslocação da população civil não poderá ser ordenada por razões relacionadas com o conflito, salvo nos casos em que a segurança das pessoas civis ou razões militares imperativas o exigem. Se tal deslocação tiver de ser efectuada, serão tomadas todas as medidas possíveis para que a população civil seja acolhida em condições satisfatórias de alojamento, salubridade, higiene, segurança e alimentação.
2 — As pessoas civis não poderão ser forçadas a deixar o seu próprio território por razões que se relacionem com o conflito.
A obrigação do Iraque em relação ao direito internacional humanitário costumeiro também decorre da Cláusula de Martens, prevista nas Convenções de Haia de 1899 e de 1907, reproduzida nos Protocolos de Genebra de 1977 e na Convenção das Nações Unidas sobre Armas Clássicas de 1980, que estipula que:
nas situações não previstas, tanto os combatentes como os civis, ficarão sob a proteção e autoridade dos princípios do direito internacional, tal como resulta do costume estabelecido, dos princípios humanitários, e das exigências da consciência pública.
Neste sentido, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, em seu estudo sobre o direito internacional humanitário costumeiro, aponta três regras principais acerca da utilização do meio ambiente para fins militares que já teriam atingido, por meio da prática geral dos Estados e da opinio juris, o status de costume internacional:
Regra 43. Os princípios gerais sobre a conduta de hostilidades são aplicáveis ao ambiente natural:
A. Nenhuma parte do ambiente natural poderá ser atacada, a não ser que ela possa se constituir como um alvo militar.
B. A destruição de qualquer parte do ambiente natural é proibida, a não ser que seja preciso por um imperativo de necessidade militar.
C. É proibido lançar um ataque contra um alvo militar que possa causar dano incidental ao meio ambiente que seria excessivo em relação à vantagem militar concreta antecipada.
Ainda que a modificação do meio ambiente possa ser legítima com base no princípio da necessidade militar, no caso em tela, as ações do governo iraquiano de nenhum modo poderiam ser justificadas pelo princípio da necessidade, uma vez que o conflito decorrente das insurreições de 1991 já havia terminado. As ações tomadas em relação aos pântanos mesopotâmicos tratavam-se, claramente, de uma forma de represália. Isso se torna claro quando se considera toda a propaganda negativa promovida em relação ao povo Ma’dan no período em análise. E ainda, de modo mais evidente quanto ao caso do povo Ma’dan, poderia-se citar a Regra 45 dos estudos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha:
Regra 45. O uso de métodos de guerra que são planejados, ou que possam ser previstos, que causem danos generalizados, a longo prazo ou severos ao ambiente natural são proibidos. A destruição do ambiente natural não poderá ser utilizada como arma.
Resta notar o artigo II(c) da Convenção sobre Genocídio de 1948, que já havia sido ratificada pelo Iraque no momento que os atos foram cometidos, determina que
Artigo II. Na presente Convenção, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
(c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
Sob este prisma, nota-se que o Iraque violou uma série de princípios de do direito internacional dos direitos humanos que qualificam os seus atos contra o povo Ma’dan como ilegais. Conforme as regras do direito internacional humanitário, tanto em relação aos tratados ratificados pelo Iraque quanto pelas normas costumeiras, os atos foram ilegais, na medida em que significavam uma forma de represália contra um grupo social após o término de um conflito armado e, por esse motivo, não foram justificáveis pela necessidade militar. E ainda, conforme os termos da Convenção sobre Genocídio de 1948, o ato cometido contra o povo Ma’dan configura crime de genocídio.
Após a queda de Saddan Hussein, o povo Ma’dan rompeu as barragens construídas no governo anterior, o que deu início ao processo recuperação dos pântanos mesopotâmicos. Conforme dados do Sistema de Observação dos Pântanos Iraquianos (IMOSsigla em inglês, Iraqi Marshlands Observation System) do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, cerca de 60% das áreas ocupadas pela água em 1976 foram recuperadas. Contudo, o destino do povo Ma’dan ainda é incerto. Apenas uma parcela muito pequena da população original retornou para seus locais de origem e, mesmo os que retornaram, encontraram uma vida muito mais árdua do que esperavam devido à destruição do ecossistema local.
A melhor maneira de evitar este tipo de crime no futuro seria mediante a responsabilização penal daqueles que o perpetraram. Tal ação seria, a meu ver, totalmente cabível, uma vez que o art. IV da Convenção de Genocídio estipula que todas as pessoas que tiverem cometido genocídio deverão ser punidas, sejam governantes, funcionários ou particulares. Além disso, acredito que o também seria possível que esse caso fosse julgado pelo Supremo Tribunal Criminal Iraquiano, criado após a guerra do Iraque de 2003, e que, apesar de se tratar de um tribunal de direito interno, possui o mandato para julgar crimes de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade – bem como, de modo expresso conforme o artigo 14 de seu estatuto, a depredação dos recursos nacionais – que tenham ocorrido entre 1968 e 2003.
O caso do povo Ma’dan não se trata de um caso típico de genocídio ou de migração humana. No presente caso, mais do que uma ação armada direta contra um grupo social, o governo promoveu uma política pública velada de construção de barragens a fim de minar os meios de vidas tradicionais de um grupo específico. À primeira vista, os refugiados que daí surgiram poderiam ser considerados meros migrantes econômicos, que deixam suas regiões de origem para fugir da pobreza ou em busca de melhores condições de vida, contudo, a análise aprofundada do caso concreto demonstra que houve um elemento claro de perseguição. Esse caso prova ser possível o reconhecimento do status de refugiados para migrantes por motivos ambientais que deixam suas regiões de origem de modo forçado devido à impossibilidade de manutenção da vida no local, desde que esta degradação do meio ambiente possa ser associada a uma ação ou omissão estatal em relação a um grupo social específico.

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