As Melhores do "Vai..."

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Presidenta Dilma concede entrevista coletiva em Havana

Relatos reais: O povo trabalhador do Pinheirinho chora.


No dia de ontem, ontem atendemos um pedido do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos das Pessoa Pessoa Humana ( Condepe ) para realizar um mutirão para ouvir as famílias desalojadas do Pinheirinho.


Chegamos em São José dos Campos e nos dirigimos a Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, que inicialmente serviu de abrigo aos desalojados do Pinheirinho. Fomos orientados e nos dirigimos aos abrigos onde estavam os desabrigados. Através de um questionário entrevistamos com um grupo de 90 voluntários 508 pessoas nos quatros abrigos :Caíque Dom Pedro, Ubiratan Maciel, Parque Morumbi e Vale do Sol, todos localizados na periferia da cidade.


Coube a nós visitar o abrigo Caíque Dom Pedro , com 600 desabrigados. Estavamos tensos, pois já fomos barrados logo na entrada por policiais da Guarda Municipal, houve um desconforto inicial, mas com negociações com a Assistente Social Chefe, conseguimos realizar o nosso trabalho. Pessoas alojadas em salas de aulas, no Ginásio da escola, jogadas pelo chão em colchões e um pouco dos móveis que ainda trazem uma lembrança do Pinheirinho, situação desoladora, banheiros sujos, falta de infraestrutura adequada a acolher um ser humano.

Os desabrigados reclamavam muito da alimentação, que eram entregues na forma de marmitex, diziam que a comida era ruim, as crianças relutavam em se alimentar.
Ao responder aos questionários, mais de 90% afirmaram que perderam tudo ( cama, colchão, geladeira, televisão, computador, inclusive seus intrumentos de trabalhado, como um senhor de mais de 70 anos disse que a polícia não deixou levar o seu carrinho de transportes de coleta de reciclagem, quando chegou ao local para buscá-lo o carrinho estava queimado.


Foram momentos de angústia, eles relatavam violência, desrespeito dos policiais militares e guarda municipal , pois tudo começou as 05 da manhã num domingo de descanso , dia 22 de Janeiro, com helicópteros da PM fazendo vôo razante sobre as casas, e jogavam bombas de gás lacrimogênio, assustando os moradores, as bombas atigiam os seus quintais.

As pessoas choravam nos seus depoimentos, ficou difícil para contermos o nosso choro. Estavam arrasadas, sem ter para aonde ir. A prefeitura ofereceu uma bolsa aluguel de 500 reais para alugar uma casa, impossível, inclusive sofriam o preconceito de ser moradores da ocupação Pinheirinho. Por volta das 04 da tarde deixamos o abrigo, as pessoas queriam continuar relatar as suas tristezas, foi delicada a nossa despedida, deixando para trás aquele povo sofrido por uma violência que jamais esqueceram em suas vidas.
Audiência Pública

O nosso trabalho não parava por aí, ainda tínhamos uma audiência pública na Câmara Municipal de São José dos Campos, convocada pelo Condepe.

Chegamos ao local por volta das 19h o auditório estava lotado, com a presença dos desabrigados do Pinheirinho, parlamentares e várias entidades ligadas aos direitos humanos.

Momentos de emoção com o depoimento de moradores do Pinheirinho: Começa com o áudio de Deived, vítima da violência que levou um tiro nas costas desferido por um Guarda-Municipal e logo em seguida sua esposa falou, emocionada, pois o objetivo maior era preservar a vida do seu bebê de 10 meses. Ao voltar para casa, encontrou tudo vazio.

Foram vários os depoimentos, mas o que mais chamou atenção foi a fala de Paulo Maldos ,secretário nacional de Articulação Social, da presidência da República, que estava no dia desocupação para dialogar, mas não conseguiu nada, inclusive ao falar com um oficial da PM ele disse “você volta e manda sua presidenta falar comigo”

A audiência terminou por volta das 22h e estávamos convictos do que vimos e pelas coletas de depoimentos com os moradores, o que aconteceu na desocupação do Pinheirinho foi uma afronta aos direitos humanos das pessoas humildes e trabalhadoras, na verdade um”massacre” , destroçaram as suas vidas.
Ficou acertado que voltaremos no próximo sábado, dia 04 de Fevereiro.
Muita coisa a ser feita.

Texto:
Aparecido Araujo Lima
Diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Editoras de Livros do Estado de SP

Fotos: Adolfo Pinheiro - MAVPTSP

Juiz de direito diz que expurgo no Pinheirinho foi ilegal


Jorge Luiz Souto Maior, do blog Migalhas:

O caso Pinheirinho: um desafio à cultura nacional

Eu não tenho onde morar

É por isso que eu moro na areia

Eu nasci pequenininho

Como todo mundo nasceu

Todo mundo mora direito

Quem mora torto sou eu

(Dorival Caymmi - Eu Não Tenho Onde Morar - 1960)

O que aconteceu na localidade conhecida por Pinheirinho, em São José dos Campos, município que possui um dos maiores orçamentos "per capita" do Brasil, pode ser considerado uma das maiores agressões aos Direitos Humanos da história recente em nosso país.

Querem dizer que tudo se deu em nome da lei, mas com tal argumento confere-se ao Direito uma instrumentalidade para o cometimento de atrocidades e, pior, tenta-se fazer com que todos os cidadãos sejam cúmplices do fato. Só que o Direito não o corrobora. Senão vejamos.

Na base jurídica do ato cometido está, dizem, o direito de propriedade. Um terreno foi invadido, obstruindo-se o direito da posse tranqüila ao seu titular, e, portanto, precisa ser desocupado. Simples assim...

Mas, o direito de propriedade, conforme previsto constitucionalmente, deve atender à sua função social (art. 5º. XXIII, da CF). Sem esse pressuposto nenhum direito de propriedade pode ser exercido.

A Constituição, ainda, garante a todos os cidadãos, como preceito fundamental, o direito à moradia (art. 6º, inserto no Título II, do Capítulo II, da CF).

Desse ponto de vista, a ocupação, para fins de moradia, de uma terra improdutiva, abandonada, sobre a qual o proprietário não exerce o direito de posse, que não serve sequer ao lazer e que pela sua localidade e tamanho precisa, necessariamente, atender a uma finalidade social, não é mera invasão. Trata-se, em verdade, de uma ação política que visa pôr à prova a eficácia dos preceitos constitucionais, cabendo esclarecer que essa não é uma temática exclusiva do meio rural já que as normas jurídicas mencionadas não fazem essa diferenciação e também a Constituição de 1988 passou a admitir o usucapião de imóveis urbanos (art. 183).

Assim, diante de uma ocupação dessa natureza compete ao proprietário, que pretenda recuperar a posse da terra, com o pressuposto que de fato a exerça, demonstrar que sua propriedade cumpre uma função social, tendo direito, inclusive, a uma decisão liminar, proferida logo no início do processo judicial, quando o esbulho tenha ocorrido a menos de um ano e um dia da propositura da ação possessória. Vale reforçar: como fundamento da ação não basta demonstrar o título de propriedade. Deve-se demonstrar a posse e provar que a propriedade cumpre uma função social. Do contrário, a ocupação representa uma desapropriação indireta do imóvel, que recupera a função social da propriedade, agindo o particular em substituição ao Estado, que se mostra inerte em duplo sentido: no aspecto da realização de políticas públicas efetivas de construção de moradias dignas para todos; e no que tange à exigência plena das finalidades sociais das propriedades privadas. Nesse caso, confere-se ao proprietário a possibilidade de acionar judicialmente o Estado para pleitear o recebimento de indenização equivalente ao valor de mercado do imóvel, que, então, deve ser desapropriado para atender sua função social. Vide, a propósito, decisão proferida no Processo n. 1.0000.00.271812-0/000(1), da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Relator Des. Garcia Leão, que julgou procedente o pedido do proprietário de receber indenização do Estado pela desapropriação. Quando propriedades rurais ou urbanas, cuja posse não é exercida por seu titular, e que não atendem função social alguma, estando apta a tanto, passam a ser ocupadas por cidadãos que não têm onde morar, também os respectivos proprietários são atingidos pela inércia do Estado, vez que só existem cidadãos prontos para o ato em questão porque o Estado não cumpre a sua obrigação constitucional.

Várias, são, aliás, as decisões da Justiça do Estado de São Paulo no sentido da afirmação da função social da propriedade, aplicada em situações análogas à do Pinheirinho. Em sentença proferida pelo juiz Amable Lopez Soto, em janeiro de 2006, nos autos do processo n. 007.96.318877-9, em trâmite na Vara Cível do Fórum Regional VII de Itaquera, restou consignado:

Ocorre que hoje a área transformou-se em um dos muitos bairros pobres de São Paulo, logo, a partir da inação do Estado em criar as condições de moradia para milhares de pessoas que vivem na rua, sem teto próprio, estas, por extrema necessidade, acabaram por praticar o ato de desapropriação indireta do imóvel, repartindo o espaço de forma a permitir uma moradia minimamente digna.

A partir da inação do Estado parte da população fez uso de um dos instrumentos que, a princípio, só ao Estado é permitido, o de desapropriação indireta de área que não cumpria sua função social.

Ao final, julgando improcedente o pedido de reintegração, concluiu:

Enfim, o que se tem nestes autos é uma verdadeira impossibilidade de reintegração de posse ante o tempo e a situação hoje existente, cabendo ao autor, como forma de não se empobrecer sem justa causa e, ante a responsabilidade do Estado, propor a ação de reparação que permita recompor, pela via da indenização, seu patrimônio.

No corpo de sua sentença, Amable cita várias outras decisões com igual teor.

a)

O particular que tem sua propriedade invadida por mais de cinco mil pessoas que, se desalojadas, não terão para onde ir, deve buscar do Poder Público a indenização a que faz jus decorrentes da desapropriação indireta. Entretanto, a reintegração de posse não deve ser deferida, em homenagem ao princípio da função social que a propriedade tem, nos termos do art. 2º, IV, da Lei 4.132/62 e art. 5º, XXIII, da Constituição Federal.

(....)

...tecnicamente a sentença não merece reparos. Mas o direito evolui, situação que, particularmente, atingiu o direito de propriedade. Não é mais possível idealizar a proteção desse direito no interesse exclusivo do particular, pois hoje princípios da função social da propriedade aguardam proteção mais efetiva. Não fora isso, a função do Judiciário, de solucionar conflitos de interesse, não pode desprezar a necessidade de por fim ao embate posto nos autos, mas de impedir, com a decisão dada, que outras lides venham a acontecer.

Está em estudo um litígio entre um particular que teve suas terras inutilizadas invadidas e um grupo de mais de cinco mil famílias que ali se instalaram por não ter outro lugar para ficar.

Retiradas do local, por certo deverão ocupar outro. Se particular, novo conflito será criado. Se públicas, também o Poder Público, em tese, tem direito de recuperá-las. O certo é que, para qualquer local onde sejam essas pessoas levadas, o mesmo problema que aqui aparentemente se resolve será novamente criado. Sequer condenar os requeridos a flutuar é possível, pois em tese o espaço aéreo sobre um imóvel pertence ao dono da superfície (art. 526 do CC).

Quando o Poder Público, responsável pela proteção de todos os cidadãos, inclusive dos aqui requeridos, permite durante muito tempo que muitos se instalem em determinado local, há de ser reconhecida a desapropriação indireta. É o sacrifício do um proprietário, indenizado, entretanto, por toda a sociedade, que servirá de solução a um conflito que se eternizaria com a simples determinação de sua desocupação.

Entendido que o imóvel foi, de forma indireta, desapropriado, não caberia a ação possessória que tem por finalidade recuperar a posse em decorrência da propriedade. Mas, tendo havido perda desta, para o interesse público em disputa, a pretensão deve ser tão somente indenizatória contra o Poder Público responsável pela política urbana.

Os bens indiretamente expropriados, porque aproveitados para fins de necessidade, utilidade pública, ou de interesse social, não podem ser reavidos in natura, impossível vindicar o próprio bem, a ação cujo fundamento é o direito de propriedade, visa, precipuamente, à prestação do equivalente da coisa desapropriada, que é a indenização... (STF, RTJ 61/389). (José Luis Gavião de Almeida, Acórdão proferido na apelação n. 823.916-7, J. 27/08/02 – RT 811/243):

b)

A Prefeitura do Município, reconhecendo a existência do problema social ínsito nesta ação e em duas outras de áreas contíguas que tramitam nas duas outras varas cíveis deste foro, ajuizou ação de desapropriação ora em trâmite na 5ª Vara da Fazenda Pública.

Pretende-se regularizar a situação de fato já consolidada no tempo (os réus ocupam o imóvel, no mínimo, desde 1.994), mediante pagamento de indenização a quem de direito.

Não é razoável que para proteção da posse de uma empresa seja destruído um bairro inteiro numa verdadeira operação de guerra, desencadeada pelo Estado, quando existe outra solução mais afinada com o interesse social, isto é, a desapropriação do imóvel com o pagamento da indenização a quem faça. (Magistrado Mário Dacache, autos do processo n. 2.122/95, juízo cível do Fórum Regional VII de Itaquera)

c)

No caso dos autos a coisa reivindicada não é concreta, nem mesmo existente. É uma ficção.

Os lotes de terreno reivindicados e o próprio loteamento não passam, há muito tempo, de mera abstração jurídica. A realidade urbana é outra. A favela já tem vida própria, está, repita-se, dotada de equipamentos urbanos. Lá vivem muitas centenas, ou milhares de pessoas. (…) Lá existe uma outra realidade urbana, com vida própria, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. O comércio está presente, serviços são prestados, barracos são vendidos, comprados, alugados, tudo a mostrar que o primitivo loteamento só tem vida no papel. (…).

Loteamentos e lotes urbanos são fatos e realidades urbanísticas. Só existem, efetivamente, dentro do contexto urbanístico. Se são tragados por uma favela consolidada, por força de uma certa erosão social, deixam de existir como loteamento e lotes.

A realidade concreta prepondera sobre a 'pseudo-realidade jurídico-cartorária'. Esta não pode subsistir em razão da perda do objeto do direito de propriedade. Se um cataclisma, se uma erosão física, provocada pela natureza, pelo homem ou por ambos, faz perecer o imóvel, perde-se o direito de propriedade.

É verdade que a coisa, o terreno, ainda existe fisicamente.

Para o direito, contudo, a existência física da coisa não é fator decisivo, consoante se verifica dos mencionados incisos I e III do art. 78 do CC (de 1.916). O fundamental é que a coisa seja funcionalmente dirigida a um finalidade viável, jurídica e economicamente. Pense-se no que ocorre com a denominada desapropriação indireta. (…)

Por aí se vê que a dimensão simplesmente normativa do Direito é inseparável do conteúdo ético social do mesmo, deixando a certeza de que a solução que se revela impossível do ponto de vista social é igualmente impossível do ponto de vista jurídico. (…)

O princípio da função social atua no conteúdo do direito. E, dentre os poderes inerentes ao domínio, previstos no art. 524 do Código Civil (usar, fruir, dispor e reivindicar), o princípio da função social introduz outro interesse (social) que pode não coincidir com os interesses do proprietário. (…)

Assim, o referido princípio torna o direito de propriedade, de certa forma, conflitivo consigo próprio, cabendo ao Judiciário dar-lhe a necessária e serena eficácia nos litígios graves que lhe são submetidos” (apCiv. 212.726-1-8-SP, j. 16.12.1994, Desembargador José Osório)

Não se pode esquecer, ademais, que o Estado atual é o Estado de Direito Social e neste sentido rege-se, juridicamente, pela obrigação de garantir a eficácia dos direitos sociais, constitucionalmente consagrados, não lhe cabendo, portanto, assegurar o direito de propriedade numa perspectiva meramente liberal, até porque também esse direito está vinculado a cumprir uma função social e isso não é retórica, tratando-se de expressão inequívoca da lei.

Em resumo, instalado um tal conflito de ocupação, cabe ao Estado assumir sua responsabilidade perante o problema, desapropriando o imóvel para o fim de integrá-lo a um projeto habitacional, e não fingir que não faz parte do problema, vendo a situação como mero embate entre particulares e, pior, impor uma solução que atenda, exclusivamente, o interesse do direito de propriedade, numa perspectiva liberal, passando por cima de vários outros valores integrados ao ordenamento jurídico como Direitos Fundamentais.

No caso do Pinheirinho o que se viu foi um profundo desrespeito à ordem jurídica.

Entendamos o caso: em 2004, em São José dos Campos, um terreno urbano de um milhão e trezentos mil metros quadrados, foi ocupado por algumas famílias, para fins de moradia. O terreno pertencia a uma empresa falida, Selecta, e estava abandonado. Até antes da ocupação o terreno não cumpria função social alguma. As famílias em questão eram vítimas do “déficit” imobiliário daquele município, numa situação inconcebível, já que São José dos Campos é uma das cidades mais ricas do Brasil.

Não se tratou, pois, de mera invasão, mas de ato político organizado para extrair o Estado de sua inércia e para buscar a eficácia dos preceitos constitucionais do direito à moradia e da função social da propriedade. Não se tratou, igualmente, de ato de pessoas espertas, que quiseram se aproveitar da situação, passando à frente na fila dos milhões de brasileiros que também não têm onde morar, pois, como bem ponderou Ricardo Boechat, comentando o assunto, nenhum esperto tem como projeto de vida morar em um terreno ocupado, em precárias condições habitacionais. Os espertos estão em outros lugares, bem mais confortáveis, por certo. Os ocupantes do Pinheirinho são, ao contrário, pessoas injustiçadas e sofridas, vítimas da inércia de governantes que insistem em tratar as estruturas do Estado fora da perspectiva do Direito Social e do respeito aos Direitos Humanos. Claro, como insistiram em mostrar os autores da agressão, lá também havia consumidores de drogas e até alguns objetos frutos de furto, mas isso em nada altera a configuração jurídica refletida na situação, até porque drogas se consumem, infelizmente, por todos os cantos e o encontro de objetos furtados não representa, por si, identificação de autoria do crime e, de todo modo, a pena pelo furto não é a perda do direito à moradia. É forçoso reconhecer, portanto, que aquelas pessoas foram vitimadas pela histórica péssima distribuição de renda que reina em nosso país. Nossa profunda injustiça social está na base do fenômeno e não pode ser negligenciada.

Mas, admitamos que toda essa análise jurídica esteja errada, que nada disso justifique o ato cometido pelos cidadãos que se tornaram, pela ocupação, moradores do Pinheirinho. Partamos do princípio de que um erro não justifica o outro e que não se corrige a ilegalidade da inércia do Estado com outra ilegalidade, cometida pelo particular. Reconheçamos, enfim, que houve um ato ilegal pela "invasão" e que a autoridade do ordenamento jurídico precisava mesmo ser recomposta.

O problema é que para que a recomposição da realidade anterior todas as inserções jurídicas do fato consumado precisavam ser consideradas. Quando se coloca em pauta a autoridade do ordenamento jurídico é do todo jurídico que se fala e não de um aspecto único e isolado. Assim, mesmo abstraindo as noções de que a ocupação para moradia não se trata de mera invasão e de que a retomada da posse precisa passar pelo crivo da avaliação da função social da propriedade, a efetivação do direito do proprietário de reaver a posse do imóvel deve ser confrontado com outros direitos que porventura estejam em jogo na situação fática existente. O ato da reintegração, por conseguinte, não pode ser feito de forma a atingir a integridade física das pessoas, mesmo se tratadas, juridicamente, como "invasoras", conforme já fixado pelo STJ em decisão proferida em pedido de intervenção federal no Estado do Mato Grosso, requerida pela Massa Falida de Provalle Incorporadora Ltda, por não haver o Governador daquela unidade federativa atendido requisição de força policial do Juízo de Direito da Vara de Falências e Concordatas de Goiânia - GO - para dar cumprimento a mandado de reintegração de posse em área de 492.403m²:

EMENTA DIREITO CONSTITUCIONAL. INTERVENÇÃO FEDERAL. ORDEM JUDICIAL. CUMPRIMENTO. APARATO POLICIAL. ESTADO MEMBRO. OMISSÃO (NEGATIVA). PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. PONDERAÇÃO DE VALORES. APLICAÇÃO. 1 - O princípio da proporcionalidade tem aplicação em todas as espécies de atos dos poderes constituídos, apto a vincular o legislador, o administrador e o juiz, notadamente em tema de intervenção federal, onde pretende-se a atuação da União na autonomia dos entes federativos. 2 - Aplicação do princípio ao caso concreto, em ordem a impedir a retirada forçada de mais 1000 famílias de um bairro inteiro, que já existe há mais de dez anos. Prevalência da dignidade da pessoa humana em face do direito de propriedade. Resolução do impasse por outros meios menos traumáticos. 3 - Pedido indeferido. (INTERVENÇÃO FEDERAL Nº 92 - MT (2005⁄0020476-3) - RELATOR: MINISTRO FERNANDO GONÇALVES)

No caso Pinheiro esse entrelace de direitos foi solenemente ignorado, a começar pelos aspectos processuais. A ação política da ocupação do terreno teve início em 2004. No mesmo ano, o proprietário do imóvel, a Massa Falida da empresa Selecta, ingressou com a ação de reintegração, mas não obteve decisão liminar favorável à sua pretensão. Interpôs, então, recurso denominado agravo de instrumento, tendo conseguido, junto à 16ª. Câmara do Tribunal de Justiça, a concessão da liminar para a reintegração. Mas, tal decisão, em virtude de vícios processuais formais, foi cassada, mediante mandado de segurança, impetrado pelos moradores. O processo, então, prosseguiu seus trâmites normais, com diversos embates jurídicos, sendo que em 2010 a nulidade do meio processual utilizado pela Massa Falida para tentar reformar a decisão que negou a liminar foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, prevalecendo, então, a decisão inicial, que negou a liminar de reintegração.

Nesse meio tempo, a ocupação foi se organizando ainda mais e se consolidou com a constituição de uma Associação de Moradores, que urbanizou o local com a formação de ruas, praças e a divisão do terreno em lotes com 250 metros quadrados, obedecendo-se, ainda, a regra, fixada pela Associação, de uma família por terreno. Formou-se no lugar um autêntico bairro, com novos moradores, pessoas oriundas da comunidade local, São José dos Campos, trabalhadores com ocupações diversas e também, é claro, desempregados, que para lá se dirigiam e investiam na construção de suas casas, agindo de tal forma, com boa-fé, principalmente em razão do aceno dado pelas três esferas do poder, Federal, Estadual e Municipal, em torno da possibilidade concreta da regularização da situação. Representantes das esferas do Poder visitaram por diversas vezes a comunidade.

E, de repente, em julho de 2011, uma nova juíza atuando no processo, tendo ciência da definição da questão pelo STJ, que consolidava a situação favorável aos moradores, concede liminar para a reintegração de posse, sem motivação específica baseada em fato novo.

É isso mesmo! O que se viu no Pinheirinho teve por fundamento uma decisão liminar, concedida sete anos e meio depois do ingresso da ação de reintegração, não se considerando a alteração fática havida no local, que, em verdade, apenas reforçava as razões para a rejeição da reintegração, ainda mais em sede de decisão liminar. É evidente, pois, a impropriedade da medida, de caráter liminar, insista-se, diante do tempo já decorrido, que eliminou a urgência para esse tipo de solução para um conflito tão complexo, estando, ademais, ultrapassado, há muito, o requisito do ano e dia, e, sobretudo, em razão da profunda alteração fática advinda no local desde o início do processo. Segundo o Censo realizado pela própria Prefeitura de São José dos Campos, já viviam no local 1.577 famílias, ou, mais precisamente, 5.488 pessoas, sendo 2.615 com idade entre 0 e 18 anos. Além disso, o assentamento, ou bairro como também era tratado, continha 81 pontos comerciais, seis templos religiosos e um galpão comunitário.

Bem se vê que a questão envolvia um feixe enorme de direitos, não estando em jogo única e exclusivamente o direito de propriedade da Massa Falida. Assim, ainda que fosse para privilegiar o direito de propriedade da Massa Falida, sem a necessidade de justificá-lo pelo pressuposto da finalidade social, haver-se-ia, no mínimo, que assegurar que outros direitos não fossem, simplesmente, desprezados.

O ato da desocupação, portanto, mesmo se considerada legítima, deveria ser precedido de uma organização tal que permitisse a preservação dos demais direitos envolvidos. Ainda que os moradores se apresentassem armados, dispostos a lutar contra a ordem judicial, as negociações, com todos os meios institucionais possíveis, deveriam conduzir à solução da situação. E, ademais, era o que se anunciava, tanto que a própria Massa Falida assinou documento, levado ao processo da falência, aceitando a prorrogação da efetivação da ordem de reintegração. No Pinheirinho houve até festa para comemorar a reabertura das negociações, que não se encaminhavam, propriamente, em torno da forma de reintegração, mas na direção, enfim, da desapropriação por atuação direta da Federação, o que talvez não interessasse aos propósitos especulativos locais e às pretensões eleitorais dos governos do Estado e do Município.

Assim, o que se verificou na seqüência, já no dia seguinte, foi uma reviravolta inexplicável da postura do Judiciário frente às possibilidades de negociação e a utilização da "trégua" como estratégia para desarmar os moradores, possibilitando a concretização da violência policial, típica de uma guerra, contra os cidadãos do Pinheirinho, ação esta que já estava preparada, por certo, há muitos dias, diante de seu vulto, e que vai ficar para os anais da nossa história, em razão dos efeitos produzidos, como uma das maiores aberrações humanitárias já vistas, ainda que os seus comandantes a queiram apontar como uma ação "limpa", conforme assinalado pelo juiz Rodrigo Capez, assessor da presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo: "Pelo Poder Judiciário, representando a presidência do TJ, gostaríamos de expressar nosso agradecimento pelo belo trabalho executado pela Polícia Militar. Uma ação bem planejada e muito bem executada. Para aqueles que imaginavam que haveria um novo Eldorado do Carajás, um massacre, essa ação limpa demonstrou que esses temores eram absolutamente infundados. Hoje se cumpre a reintegração de posse"1.

Em concreto, o Poder Judiciário e o Governo do Estado de São Paulo se uniram contra os moradores do Pinheirinho, tratando-os como inimigos. Não cola o argumento da defesa da legalidade e do resgate da autoridade do ordenamento jurídico, como visto. E mesmo que houvesse, repita-se, por que, depois de quase oito anos de uma situação consolidada, em que um terreno baldio, que servia à especulação imobiliária, foi transformado em um bairro de moradores de baixa renda, teve-se tanta pressa para devolver a posse do terreno à Massa Falida? Por que, para chegar a esse objetivo, mobilizar 2.000 Policiais Militares, helicópteros, cães e armas de todo tipo (ainda que menos letais)? Por que expulsar, de forma abrupta e violenta, pessoas de suas casas na calada da noite de um domingo, fazendo com que essas pessoas deixassem para trás seus pertences, utensílios, roupas e até documentos? Por que fazer tudo isso sem qualquer preocupação com a condição humana dessas pessoas, conduzindo-as a abrigos improvisados, sem condições minimamente dignas de sobrevivência? (As imagens dos abrigos falam por si e tendo constatado a situação in loco posso assegurar que as imagens não refletem o total drama vivido por aquelas pessoas). Por que submeter essas pessoas, nos abrigos, ao uso de pulseiras com cores diferentes, para que pudessem ser identificadas como moradoras do Pinheirinho? Por que deixarem crianças e jovens assistirem tamanha brutalidade contra seus pais? Que mal essas crianças cometeram? Que tamanho mal, ademais, cometeram todos aqueles que lá estavam à procura de um lugar para morar, sendo certo que não era um lugar nenhum pouco glamoroso? Por que passar um trator por cima das casas e estabelecimentos comerciais que foram construídos no local ao longo de oito anos de consolidação do bairro?

Tudo isso para entregar o terreno a uma Massa Falida, que nunca se preocupou com a função social daquela propriedade e que certamente não vai exercer a posse sobre o terreno?

Ora, em nenhuma ponderação de valores que se faça da situação vivenciada, atendendo os pressupostos da razoabilidade e da proporcionalidade, vai se chegar ao peso que foi dado ao interesse da Massa Falida, valendo acrescentar que a empresa em questão, Selecta, proprietária do imóvel, também ela, nunca cumpriu qualquer função social, jamais tendo produzido um alfinete sequer, vez que foi constituída apenas para servir de fachada nas intermediações de negociações imobiliárias das empresas de um grupo econômico. No processo de falência respectivo, inclusive, não há credores trabalhistas ou quirografários. O único credor é o próprio Estado, sobretudo o Município de São José dos Campos, com relação à dívida de IPTU, em torno de R$14.000.000 (quatorze milhões de reais).

Alguma razão não muito clara, que pode ser, por hipótese, um melindre entre as esferas de Poder Estadual e Federal, já que uma autorizava a reintegração e a outra a recusava, ou que pode ser a necessidade do governo estadual de afirmar sua autoridade diante dos movimentos sociais, sobretudo diante do alcance eleitoral que a questão atingiu, foi determinante para que a Justiça Estadual, em ato que chegou a ser reivindicado pelo Presidente do Tribunal, que enviou assessor direto para cuidar do assunto, passasse por cima de todos os Direitos Humanos envolvidos e determinasse a reintegração da posse, sendo auxiliada, com a maior presteza possível, pelo governo Estadual, que, com a intervenção direta do próprio governador, autorizou a instauração de uma ação de guerra contra os cidadãos do Pinheirinho.

É isso mesmo! Os nossos co-cidadãos foram vítimas de uma ação militar típica de guerra, que foi programada durante quatro meses, conforme reconheceu, em recente entrevista, a juíza do processo de reintegração, e que, por isso mesmo, precisou ser executada passando por cima até do acordo judicial assinado pelas partes, no processo da falência, em torno da suspensão da reintegração. E um dado extremamente importante deve ser destacado, que torna a origem da ação policial, a mando do Estado de São Paulo, ainda mais questionável: em entrevista ao Jornal, O Vale, a juíza do processo de reintegração, que concedeu a liminar, confessou que o ato policial não estava plenamente sob o seu controle e que sabia dos riscos que estava impondo aos moradores do Pinheirinho. Disse ela, textualmente: "A operação me surpreendeu, positivamente."

Seja como for, o fato é que os cidadãos do Pinheirinho foram tratados como inimigos do Estado. Foram presos sem processo, já que ficaram várias horas impossibilitados de sair do assentamento, enquanto a Polícia mantinha luta aberta contra moradores do bairro vizinho que se insurgiram contra ação policial intentada no local. Foram marcados como se estivessem em um campo de concentração. Foram desalojados. Foram conduzidos, por força, a um local inabitável, sem qualquer condição de higiene, não tendo havido, inclusive, qualquer cuidado especial com crianças, idosos e doentes. Ou seja, foram profundamente agredidos em sua dignidade. Registre-se, a propósito, que se trata de Princípio Fundamental da República Federativa do Brasil a proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º. III, CF) e que constituem objetivos fundamentais da República "construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º., CF), valendo lembrar, ainda, que o Brasil deve reger-se nas suas relações internacionais pela "prevalência dos direitos humanos" (art. 4º. II, CF).

Os moradores do Pinheirinho, inclusive, tiveram o seu direito de propriedade, com relação aos seus pertences, desrespeitado e continuam, ainda hoje, sem que o Estado reconheça sua responsabilidade quanto ao problema do qual tudo se originou: a ausência de moradia.

Em concreto, aquelas pessoas, que de boa-fé puderam acreditar em um projeto de vida, por mais precário que fosse, com a formação do Pinheirinho, estão agora mendigando local para se alojar e, de certo modo, estão sendo tratadas como animais.

E o pior disso tudo é que essa situação foi imposta pelas forças institucionalizadas do Estado, cuja função seria a de, em primeiro plano, proteger o cidadão. E, ademais, quem vai pagar pela operação realizada? Os custos da operação serão calculados e inseridos no processo? Certamente não e a sociedade como um todo, portanto, arcará com a despesa que se fez necessária para a prática do ato destinado à defesa da posse de um terreno privado e que, ao mesmo tempo, soterrou vários Direitos Humanos. Vai se dizer que o governo estadual colaborou com a Justiça para a efetivação de uma ordem judicial, mas esse mesmo governo não se tem mostrado nenhum pouco colaborador no que se refere às decisões judiciais que visam o resgate da autoridade dos direitos sociais de incontáveis cidadãos. O Estado de São Paulo deve cerca de R$20 bilhões em precatórios, que se arrastam interminavelmente, sendo R$15 bilhões a título de créditos trabalhistas e previdenciários.

A questão mais relevante que se apresenta, de todo modo, é: o que fazer agora?

Solidarizar-se com os ex-moradores do Pinheirinho é importante, mas não basta.

É preciso que a autoridade do ordenamento jurídico, visto de forma integral, seja imediatamente recobrada. Há urgência na prevenção e reparação dos direitos, que foram desrespeitados, dos, agora, "ex-moradores" do Pinheirinho.

Se o Estado se mostrou eficiente para preservar o direito de propriedade, cumpre-lhe, presentemente, demonstrar a mesma presteza para garantir a essas pessoas uma moradia digna e para reparar as agressões de que foram vítimas. Essa eficiência, alias, seria necessariamente antecedente à reintegração manus militaris operada, mas deve, enfim, ser operada. Assim, em razão de sua inércia perante o problema e por terem, pela própria inação, induzido os moradores do Pinheirinho a acreditarem na viabilidade do assentamento, e por terem sido completamente incapazes de construir uma solução para o problema, jogando tudo nas mãos do Judiciário, devem ser responsabilizados o Município de São José dos Campos, o Estado de São Paulo e mesmo o Governo Federal, sendo que o Judiciário, nas ações judiciais que venham a ser movidas, deve, mostrando que sua eficácia não tem lado, conceder liminar para obrigar os entes mencionados a pagarem indenização aos desalojados pelos danos pessoais experimentados, considerando a forma como foram tratados, assim como para determinar às esferas de poder competentes a construção imediata de casas com, no mínimo, o mesmo padrão que essas pessoas possuíam, com todos os seus utensílios, garantindo-lhes, enquanto a obra não for concluída, uma ajuda de custo para moradia e alimentação, sob pena de multa e demais conseqüências legais por desobediência à ordem judicial, mobilizando, para fazer cumprir a decisão garantidora dos Direitos Humanos, se necessário, o mesmo aparato policial utilizado na ação de reintegração de posse. E o terreno para tanto? Bom, cumpre aos entes públicos encontrá-lo!

Independente disso, a questão deve ser levada, imediatamente, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para que o Estado brasileiro não reste impune, em suas relações internacionais, da grave agressão aos Direitos Humanos que permitiu ocorrer em seu território, conforme preconizado no Manifesto de Juristas, organizado pelo professor Fábio Konder Comparato e o Procurador do Estado de São Paulo, Márcio Sotelo Felippe2.

E se nada disso puder ocorrer? E se for apenas um devaneio acreditar que tais respostas jurídicas possam ser dadas à presente situação? Sem que outras medidas, igualmente eficazes para reparar os Direitos Humanos agredidos, se apresentem, há se questionar, então, se não é hora de re-fundar o Brasil, a começar pelo Impeachment dos responsáveis pelas atrocidades identificadas no caso do Pinheirinho, não sendo demais lembrar que no caso do Estado de São Paulo o fato se insere em um contexto determinado de enfrentamento aos movimentos sociais, de desrespeito às liberdades democráticas e de ataque à pobreza por meio de força bruta.

O caso Pinheirinho foi muito grave e a sociedade brasileira como um todo está desafiada a encontrar soluções que recomponham, imediatamente, a credibilidade na eficácia do Estado Democrático de Direito Social, instituído constitucionalmente.

O maior risco que vislumbro em situações como estas é o da produção, e acatamento, de argumentos que tentam legitimar as atrocidades verificadas, desconsiderando-as enquanto tais ou as justificando por intermédio do Direito, como se os atores não fossem responsáveis pelos seus atos, apresentando-se apenas como espécies de escravos de uma imposição legislativa. Essa racionalidade é destruidora dos vínculos de solidariedade, desvirtua a finalidade social e humanística do Direito e das estruturas de poder, gera a perda da própria consciência humana e, no caso específico do Brasil, acaba servindo para preservar, sem possibilidade concreta de oposição, a injustiça social que assola a maior parte da população brasileira. A falta de moradia e o desrespeito à dignidade humana das classes economicamente menos favorecidas, aliás, chegam a fazer parte da cultura nacional. E, "se o senhor num tá lembrado, dá licença de contá. Ali onde agora está esse adifício arto era uma casa véia, um palacete assobradado. Foi ali, seu moço, que eu, mato Grosso e o Joça, construímo nossa maloca. Mas um dia, nóis nem pode se alembrá, veio os home c'as ferramenta, o dono mandô derrubá. Peguemo todas nossas coisa, e fumo pro meio da rua apreciá a demolição. Que tristeza que nóis sentia, cada táuba que caía, doía no coração. Matogrosso quis gritá, mas em cima eu falei: 'Os home tá com a razão, nóis arranja outro lugá'. Só se conformemo quando o Joca falô: 'Deus dá o frio conforme o cobertô'. E hoje nóis pega as paia nas grama dos jardim, e pra esquecê nóis cantemo assim: Saudosa maloca, maloca querida, qui dim donde nóis passemo os dias feliz da nossa vida."3

Uma cultura, ao mesmo tempo, de insensibilidade e de resignação com a injustiça, que o próprio Adoniram Barbosa, em 1969, tentou mudar, com nova música, Despejo na Favela, a qual, no entanto, não restou tão difundida quanto a primeira:

Quando o oficial de justiça chegou

Lá na favela

E contra seu desejo

Entregou prá seu Narciso

Um aviso prá uma ordem de despejo, assinada seu Doutor

Assim dizia a petição:

Dentro de dez dias quero a favela vazia e os barracos todos no chão

É uma ordem superior,

Ôôôôôôôô, meu senhor, é uma ordem superior

Não tem nada não seu Doutor,

Não tem nada não

Amanhã mesmo vou deixar meu barracão

Não tem nada não seu Doutor

Vou sair daqui

Prá não ouvir o ronco do trator

Prá mim não tem problema

Em qualquer canto me arrumo

De qualquer jeito me ajeito

Depois o que eu tenho é tão pouco

Minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás

Mas essa gente aí, hein, como é que faz????

Pois é, já passou mesmo da hora de alterar a base cultural em torno das questões sociais para reescrevermos nossa história!

__________

1http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/01/25/pm-e-justica-restituem-posse-de-pinheirinho-e-exaltam-operacao.htm

2http://www.viomundo.com.br/denuncias/juristas-e-entidades-comprometidos-com-a-democracia-denunciam-caso-pinheirinho-a-oea.html

3 Adoniram Barbosa, "Saudosa Maloca", 1951.

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* Jorge Luiz Souto Maior é juiz do Trabalho, titular da 3ª. Vara do Trabalho de Jundiaí, membro da Associação Juízes para a Democracia e professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

No rumo certo - Por Zé Dirceu

José Dirceu

Há uma relação crescente de confiança e reconhecimento entre a população brasileira e os governos do PT e partidos aliados, laço que tem se fortificado de maneira especial neste Governo Dilma Rousseff. É o que se depreende da pesquisa Datafolha que foi divulgada no final de semana passado e que revela que o governo Dilma é o mais bem avaliado em seu primeiro ano desde a redemocratização, tendo recebido nota média de 7,2.
Os 59% que consideram a gestão Dilma ótima ou boa constituem um recorde de aprovação, à frente dos 50% registrados pelo ex-presidente Lula no primeiro ano de seu segundo mandato (2007). Lula obteve 42% de ótimo/bom no primeiro ano de governo (2003), o que transparece uma linha crescente de aprovação desde que os governos do PT e dos partidos aliados tiveram início.
O fato de que a aprovação de Dilma se mostra estável nas diferentes regiões do país, nas faixas de renda à exceção dos mais ricos (acima de 10 salários mínimos) e também nos diversos níveis de escolaridade só reforça a avaliação de que crescem os laços entre os brasileiros e o projeto de país que tem sido realizado.
Nesse sentido, demonstra-se incompleta a leitura de que é a condução da economia sem turbulências que sustenta a aprovação de Dilma. De fato, nossa economia tem conseguido enfrentar, equilibrar e superar os obstáculos e desafios nos últimos nove anos. Mas não podemos desprezar que parcela significativa da população passou a acessar um conjunto de bens e direitos antes desconhecidos e distantes.
Essa transformação repercute em toda a sociedade, ampliando a confiança e a credibilidade do governo por fazer o que se comprometeu. Afinal, o viés de crescimento econômico, com distribuição e aumento da renda e geração empregos com carteira assinada está presente desde o início do Governo Lula. E foi mantido no primeiro ano do Governo Dilma sem prejuízo dos aperfeiçoamentos necessários e dos ajustes provocados pelo contexto atual. Exatamente como a população escolheu em 2010.
Isso se reflete nos índices de confiança medido pelo Datafolha. Para 60% dos entrevistados, a própria vida vai melhorar em 2012, sendo que 30% acham que ficará igual. Ou seja, para nove em cada dez brasileiros, a situação não irá piorar ?e para seis deles irá melhorar.
Os números do Datafolha comprovam o que temos dito nesses últimos anos: o Brasil passa por uma transformação profunda e consistente que nos levará a índices de desenvolvimento jamais experimentados em nossa história.
Há uma nova classe trabalhadora em formação no país, oriunda do acesso a bens e direitos que antes lhe eram negados e que agora são palpáveis. Uma classe que têm esperança e já vivencia as conquistas do aumento da renda e do emprego dos últimos nove anos.
Diante desse contexto, a responsabilidade dos nossos governos e atuações políticas fica ainda maior. Ao PT e partidos aliados, cabe trabalhar para reforçar os laços de respeito e sinceridade que se estabeleceram desde que chegamos ao governo federal. Ao país, cabe realizar as reformas política e tributária e aprofundar o conjunto de transformações ora em curso.
Esse é o caminho que estamos trilhando, no rumo certo.
José Dirceu, 65, é advogado, ex-ministro da Casa Civil e membro do Diretório Nacional do PT

sábado, 28 de janeiro de 2012

Receita Reality show... hedonismo, voyeurismo e privação de direitos: espéculo do humano

Rodrigo Marzano Antunes Miranda*




Sempre me perguntei: porque tanta gente assiste reality shows? Encontrei a resposta no conceito de hedonismo (do grego hedonê, "prazer", "vontade") que é uma teoria ou doutrina filosófico-moral que afirma ser o prazer o supremo bem da vida humana.

Aprendi a perceber o porque de tantas festas e pessoas no padrão estrutural de beleza física da sociedade moderna. O significado deste termo – hedonismo – em linguagem comum, bastante diverso do significado original, surgiu no iluminismo e designa uma atitude de vida voltada para a busca egoísta de prazeres materiais.

Cheguei a triste conclusão: olhar pelo buraco da fechadura é muito bom! Por este motivo muitos o assistem. Este tipo de programa mexe com o instinto mais primitivo da sociedade, a curiosidade, revelada nos seres humanos antes dos quatro anos de idade. Isto nos remete ao conceito de voyeurismo que é uma prática que consiste em um indivíduo conseguir obter prazer sexual através da observação de outras pessoas. Essas pessoas podem estar envolvidas em atos sexuais, nuas, em roupa interior, ou com qualquer vestuário que seja apelativo para o indivíduo em questão, o/a voyeur.

A prática do voyeurismo manifesta-se de várias formas, embora uma das características-chave é que o indivíduo não interage com o objeto (por vezes não cientes de estarem sendo observados); em vez disso, observa-o tipicamente a uma relativa distância, talvez escondido, com o auxílio de binóculos, câmeras, etc., o que servirá de estímulo para a masturbação, durante ou após a observação.Trazendo assim muito prazer.

Resolvi escrever sobre os reality shows, para refletir um plano de fundo que é sempre deixado de lado: a privação de direitos.

Jamais defenderia o fim de reality shows, mas uma oportunidade de discutir os limites deste tipo de programa, é meu verdadeiro intuito. Limites estes muitas vezes pautados unicamente pela busca da audiência. Questionar a exploração da intimidade para alcançar audiência, deveria ser a discussão central da sociedade, porém as indagações estão centradas, maquiadamente somente em um pequeno “escândalo”: a suspeita de estupro no BBB 12. A discussão deveria ser mais substâncial para a sociedade. Trabalhar o consentimento nas relações sexuais. Milhares de mulheres: nossas mães, empregadas, irmãs e outras são violentadas todas as noites e não há mobilização efetiva para isso.

Fato é que “não adianta abrir mão da ética no atacado e depois exigir um preceito ético num detalhe” (Renato Jaime Ribeiro), pois boa parte destes reality shows exploram um tipo de paixão humana que não é positiva. Estimulam a vontade de aparecer, de se exibir, geralmente com um sexualidade carregada. Os participantes são incitados e, por sua vez, incitam as pessoas a ficarem cada vez mais interesseiras e se utilizarem da intimidade para subir na vida. A sexualidade que deveria ser algo do mundo íntimo, ligada ao aprofundar-se na relação com outro, passa a ser tratada como mero “degrau”, intrumento de conquista. Tais programas não nos ajudam a ser mais felizes, pessoas melhores e/ou mais inteiras. Nesse sentido os escândalos e ‘injustiças’ do programa, nos afetam, nos fazem discutir. Seria correto continuar acreditando que a regra geral ainda é boa?

Os reality shows se parecem com um espéculo que é um instrumento com o qual o médico é capaz de enxergar, e examinar, o interior de uma cavidade do paciente, cuja forma dificulte essa abordagem direta. Dessa forma, entram em nossas casas e nos agridem, ditando nossa maneira de vida e incentivando entre outras coisas, olharmos para o próximo sempre com desconfiança.

Com objetivo semelhante ao endoscópio, difere na forma de visualização: o espéculo visa facilitar a visão do médico diretamente através do orifício, enquanto que o endoscópio utiliza uma fonte de luz e um visualizador de imagem.

Vivemos no mundo do imediato e somos a todo tempo “aconselhados”, quase que obrigados, a não esperar que uma fonte de luz faça as imagens aparecerem mais claras a nossa frente. Isto distorce o verdadeiro conceito que temos da palavra direito que possui mais de um significado correlato:

. sendo um sistema de normas de conduta imposto por um conjunto de instituições para regular as relações sociais, o que os juristas chamam de direito objetivo, a que os leigos se referem quando dizem "o direito proíbe a poligamia". Neste sentido, equivale ao conceito de "ordem jurídica". Este significado da palavra pode ter outras ramificações:

    • como o sistema ou conjunto de normas jurídicas de um determinado país ou jurisdição ("o direito português"); ou

    • como o conjunto de normas jurídicas de um determinado ramo do direito ("o direito penal", "o direito de família").

. ou a faculdade concedida a uma pessoa para mover a ordem jurídica a favor de seus interesses: o que os juristas chamam de direitos subjetivos, a que os leigos se referem quando dizem "eu tenho o direito de falar o que eu quiser" ou "ele tinha direito àquelas terras".

. ou ainda ao ramo das ciências sociais que estuda o sistema de normas que regulam as relações sociais: o que os juristas chamam de ciência do direito, a que os leigos se referem quando dizem "eu preciso estudar direito comercial para conseguir um bom emprego".

Apesar da existência milenar do direito nas sociedades humanas e de sua estreita relação com a civilização (costuma-se dizer que "onde está a sociedade, ali está o direito"), há um grande debate entre os filósofos do direito acerca do seu conceito e de sua natureza. Mas, qualquer que sejam estes últimos, o direito é essencial à vida em sociedade, ao definir direitos e obrigações entre as pessoas e ao resolver os conflitos de interesse. Seus efeitos sobre o cotidiano das pessoas vão desde uma simples corrida de táxi até a compra de um imóvel, desde uma eleição presidencial até a punição de um crime, dentre outros exemplos.

Os reality shows exibem nossa intimidade e a usam como moeda para conquistar alguém ou alguma coisa, onde sem dúvida alguma corremos o risco de abrir mão da dignidade do direito. Direito de serem reconhecidos como seres humanos, pois, estes nos veêm e pior que isso, recomedam a todos que nos vejam como um objeto, sendo este, um meio para se obter ganhos, aparecer, tornar-se alguém de sucesso e obter reconhecimento pela sociedade. Como filosófo tenho a obrigação de discutir os limites que a sociedade deve impor a tais programas, pois, a busca do prazer é fundamental para realização e felicidade do humano, porém o incentivo e aconselhamento da degradação da dignidade, em termos onde se admite que a sociedade, que “vigia”, que observa para se satisfazer, possa acuar as pessoas até a fome, até a dor física e agressões psicológicas. Situações estas, degradantes para mero entreterimento, admitindo assim o sadismo e a crueldade como coisas normais e necessárias ao prazer de uns frente aos outros.

Não obstante, os reality shows estão a cada dia mais na contramão das orientações da Organização das Nações Unidas – ONU, que trazem como Meta do Milênio, no 3° objetivo a igualdade entre sexos e valorização da mulher, buscando incentivar a autonomia feminina de forma que as mulheres passem a desempenhar papéis protagonistas na sociedade. Não protagonistas na sensualidade apelativa, exposta, a ferro e fogo, provocações futeis, mas na valorização do outro enquanto complemento do humano, não como mero objeto sem direitos que satisfaz mensões e impulsos primitivos. Isto os reality shows não incentivam a sociedade a discutir!



Bibliografia utilizada:

A escola cidadã no contexto da Globalização; edit. Vozes, Petrópolis, 1998 pág 48 à 63);

AHUMADA, J.C.-Tratado de Ginecologia. Rio de Janeiro, Editora Guanabara-Koogan, 1938;

As concepções da verdade; Convite à filosofia; Chauí, Marilena; Capítulo 3; págs 99 à 108 Ed. Ática, São Paulo, 2000;

Boudieu, Pierre; Tudo sobre a televisão edit. Jorge Zahar;

Deleuze, Gilles; Pos- Scriptum sobre a Sociedade de controle edit. 34;

Folha de São Paulo, Mais! A TV depois do real;

Folha de São Paulo, TV folha Guerra de números;

Garcia Canclini, Néstor; um dicionário Para consumidores descontentes, folha de São Paulo 2002;

Hedonismo. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012. [Consult. 2012-01-26]. Disponível na www: http://www.infopedia.pt/$hedonismo>;

Machado, Arlindo; Máquina e imaginário edit. Usp;

Mazzari,Cristian; Attencion Economy em as multidões e o Império - entre a Globalização da Guerra e Universialização dos Direitos edit. DP&A;

Negri, Antônio; O Poder Constituinte- Ensaio sobre as alternativas da Modernidade edit. DP&A;

O Estado de São Paulo, Contra a ética do varejo. Ivan Marsiglia. 22 de janeiro de 2012.

Plano Brasil sem Miséria. Municipalização dos ODM e Participação Social. Movimento Nacional pela Cidadania e Solidariedade. 2011.

Valpy, Francis Edward Jackson. An Etymological Dictionary of the Latin Language, Londres, 1828;

Voyeurismo. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012. [Consult. 2012-01-26].Disponível na www: http://www.infopedia.pt/$voyeurismo>.



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* Graduado em Filosofia – Puc-MG (2003), pós-graduado em Fé e Política (lato sensu) – Puc-Rio (2005), pós-graduando em DSI (lato sensu) – Puc-MG (2010), assessor da ALMG (2008), professor da Equipe EDUCAFRO MINAS (2011) – Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes, rede de cursinhos pré-vestibulares comunitários (Filosofia, Sociologia e Práticas de Cidadania em uma tônica de vestibular), militante de pastorais sociais da Igreja Católica e do Partido dos Trabalhadores – PT, gestor da Escola Estadual de Formação Política do PT/MG, dirigente nacional da JPT e membro da TRIBO-MG (movimento de tendência do Partido).