domingo, 17 de julho de 2011

AS FILAS DO CENTRO DE BH - @galvaopadua


O centro de Belo Horizonte é ponto de partida, é onde tudo pode começar, dependendo do sentido da sua jornada. O centro é mediação para outros caminhos. Dele irradia uma espécie de sistema de filas viárias que conduzem à periferia, às margens da cidade, à

Antônio de Pádua Galvão (*)

O centro de Belo Horizonte é ponto de partida, é onde tudo pode começar, dependendo do sentido da sua jornada. O centro é mediação para outros caminhos. Dele irradia uma espécie de sistema de filas viárias que conduzem à periferia, às margens da cidade, às encostas das montanhas, aos extremos. Pense, reflita. Onde fica o centro do seu ser? É de lá que as coisas começam a se movimentar?
É do centro da urbe que fico espreitando nas esquinas, cruzamentos, nas vielas e vilas. No meio do turbilhão, admiro uma fila de gente. O que move as pessoas é sempre a busca: seja de um documento de identidade, carteira de trabalho, passaporte, guia para pagar multa, ou mesmo uma oportunidade qualquer. A repartição pública UAI (Unidade de Atendimento Integrado) é um bom exemplo da relação burocrata estabelecida entre servidores públicos e o cidadão. A impressão que dá é que há um mecanismo insensato que permeia o ambiente, fazendo com que o atendimento seja adiado para que todos vejam a beleza da fila. Ela começa tímida, ingênua, depois vai ganhando corpo e fica enorme, incontrolável. Assim se instala um tumulto, momento incandescente para chegada do chefe, segurança, polícia e até a imprensa. Uma grande fila pode ofuscar o brilho da cidadania. Na fila da desconsideração nascem heróis e timoneiros. Políticos, jornalistas e anônimos às vezes entram em cena para denunciar e requerer providências.
Desde o início da vida enfrentamos filas. Um espermatozóide forte e vigoroso precisou estar a frente dos demais para garantir a fecundação do óvulo. Este é o instante inaugural da vida, a grande marcha. Somos criados na fila. Você, amigo leitor, é usuário das filas? Furador de fila? Qual a sua fila preferida? Qual você mais rejeita e denuncia?
Alguns de nós somos acometidos pela “filafobia”, tem pânico e horror de ver aquele monstro vivo. Mas há gosto para tudo nesta vida e há quem aprecie um amontoado de gente, contagiados pela “filafilia”. Os amantes das filas acordam cedinho e já ficam radiantes com a fila da padaria, lugar apropriado para dar um “bom dia”, comentar a manchete do jornal, falar de futebol ou política.
A fila emblemática, o supra-sumo da irracionalidade, é a fila composta por um carro e um motorista, junto de centenas de ônibus com seus milhares de aprisionados. É o “navio negreiro” dos tempos modernos. Chibata silenciosa que açoita a cidadania. A fila do engarrafamento é uma loucura. Quanta insensatez na prisão motorizada! Não há metrô que atenda a população. Vivemos numa sociedade dos motores, encapsulados no espaço privado do ego, feito de aço e fibra. Este culto pelo automóvel gera ainda outras filas: do IPVA, Seguro Obrigatório, licenciamento, do posto de gasolina e da ducha.
As filas são clássicas: do ponto de trabalho, do ponto de ônibus. Esta última, uma agressão à dignidade. Todo político eleito deveria andar de ônibus pelos menos seis meses por ano. Tenho certeza que não haveria tanta crueldade e desrespeito ao cidadão. Toda vez que vejo uma fila de ônibus, me recordo nitidamente, a luta travada para conseguir entrar no coletivo em horário de pico. Ao lado da porta, um cavalo, uma espada e um soldado tocando o povo como se fosse gado. Como permitem que faça isso com o povo? Falta coragem para uma rebelião.
Da saúde, da educação, da polícia, do consultório, do remédio, do centro de saúde (esta é um suplício anunciado). As filas são muitas e a espera costuma ser longa demais. Tem a da Justiça, da casa própria, dos hospitais, dos assalariados. Tem aquela que todo mês vira um encontro social e uma lamentação da renda: a fila dos aposentados, pensionistas, assalariados e endividados. Quantos correm todos os meses aos bancos, na ânsia de receber e ficar livre das eternas cobranças? Nesta hora tem a fila para entrar no banco, com aquela porta giratória que assedia o cidadão e obriga a abrir a bolsa, tirar o cinto, chave, celular, caneta.
Vivemos de fila em fila: na hora da refeição, com o prato do self-service ou do bandejão. Nascemos e fomos treinados para esperar a nossa vez. Tem hora que a vez passa e deixa marcas profundas. Fique atendo à sua fila e não perca a senha. Existe também um camarada que chamamos de “filaboia”. Nada escapa à sua percepção. Pedaço de pão, resto de cerveja, tira-gosto frio, guimba de cigarro. Não perde nadinha. Mora nos bares e botecos da cidade.
Fila, que te quero fila. Fila do beija mão, da comunhão, dos noivos, do batizado, filas sacramentais. Fila da confissão, esta é importante e rica de tramas e verdades. Adoraria ser padre, para ouvir as confissões. Não podendo ser confessor, tornei-me analista para ouvir a essência do ser. “A verdade é a verdade do sujeito”. Tem a nova modalidade do enamoramento carnal: a fila do fico. Beijou, pegou e saiu para próxima. Tudo muito rápido e ligeiro. Apenas pelo prazer da descoberta. Pura experimentação da pele. Superada esta fase tem a fila do motel, esta deliciosamente vivida pelos amantes.
Tem também, a fila do carnaval, do desfile de Independência, das passeatas, profissões, fila do SUS. Esta é crueldade, é o escárnio. Fila do transplante. Fila do show, roda gigante. A fila do estádio de futebol costuma ser um misto de amor e ódio. Amor pelo time, ódio pelos rivais. Existe gente tão obcecado e fanático com fila, que vê duas pessoas, uma atrás da outra, e já pergunta se estão distribuindo alguma coisa. E ainda tem pessoas que comercializam lugar na fila. Soube que uma amiga idosa pagou R$ 30,00 para conseguir atendimento na Previdência Social. Estava doente e precisou passar pela (im)perícia humana, para ser examinada por um perito médico.
Minha fila preferida é a do centro de BH. A fila do Café Nice. No entorno existem milhares de filas: a do pastel, do sorvete, da banca de jornal, do engraxate, da casa lotérica, do táxi, das compras, da farmácia. A fila da prisão do ventre. Esta é fatalmente a mais apertada, pois temos pouquíssimos banheiros públicos limpos e asseados.
Nascemos, crescemos, trabalhamos, envelhecemos e morreremos nas filas do mundo. A fila é uma invenção milenar. O mais forte impôs a lei da fila sobre os mais fracos fundando a desigualdade e a diferença. Deus ensina-nos que tudo tem seu tempo. Tempo pra amar, tempo pra lutar e tempo para esperar ser atendido nas intermináveis filas da vida. As filas do centro de BH são as veias do coração da cidade. É território essencial, ponto de travessia, instância de repouso e estação de trabalho. Não me canso de ficar na fila desta Belo Horizonte enfileirada de riquezas.

(*)Economista e Psicanalista
www.galvaoconsultoria.com.br

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