quinta-feira, 21 de julho de 2011

O Café Nice, Confraria do Centro de BH


Todos os dias sinto que uma força inevitável me conduz ao centro de BH. Estive, no passado, mais para as bordas e os extremos. A juventude é um tanto fundamentalista em vigor e desejos. Agora, repouso minhas convicções no caminho do meio, na centralidade que começa a vida. É o ponto de espera, chegada e saída. Neste sentido, chego e vou caminhando internamente e externamente no marco central. Sigo a direção da independência e emancipação, rumo à Praça Sete, símbolo totêmico de um povo livre. É deste Belo Horizonte que enxergo o mundo.

No centro repousa um “Pirulito”, obelisco doado pelo povo da vizinha Capela Nova de Betim aos habitantes da capital mineira, por ocasião da comemoração do Centenário da Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1922. Desenhado pelo arquiteto Antônio Rego e construído pelo engenheiro Antônio Gonçalves Gravatá, o “Pirulito” foi esculpido de granito e formado por uma agulha de 7m apoiada sobre um pedestal quadrangular adornado por um poste em cada uma de suas arestas. O nome originalmente escolhido para o local foi Praça Doze de Outubro, em homenagem ao dia 12 de outubro de 1492, data comumente atribuída à descoberta da América, por Cristovão Colombo. Há uma inscrição gravada no monumento que diz “Em memória dos grandes e pequenos obreiros da Indepêndencia do Brasil”.

Bem próximo do “Pirulito”, existe um precioso relicário de gente. Coisa preciosa, joia lapidada pelo tempo que os olhos agudos e a escuta aprimorada conseguem captar os movimentos do passado e a crônica do dia a dia. Neste ambiente humano onde se reúnem diariamente a velha guarda, adultos e os moços, histórias são fecundadas e encontra-se a essência da cidade. O Café Nice é ponto de encontro da irmandade. Permita-me lembrar que este nome grego (Nice) significa “Deusa da Vitória”. É neste templo que se percebe o que é essencial na vida. Uma matriz mineira e belo-horizontinha, nossa igreja, sinagoga, templo, terreiro e espaço laico de vencer a trama da vida, de imortalizar momentos com a presença dos bons e leais confrades.

É neste santuário de convivência que está instalado há mais de 72 anos o Nice, que o fundador amigo de todos, Sr. Afonso Caldeira (1916 a 2009), com dedicação e afeto, transmitiu como herança empresarial e espiritual. Na xícara está grafada a alma do idealizador e de seus filhos Renato e Tadeu “deste 1939 fazendo amizades”. Ali, no meio da cidade, Avenida Afonso Pena, 727, ponto tradicional do centro de BH. Sempre foi lugar marcado para discutir política, futebol, carestia, amores, infidelidades, manchetes de jornais e fazer apostas.

Peço licença ao escritor para citar literalmente o texto: “Uma fórmula de sucesso iniciada em 1939. E, embora tudo o que hoje se vê no n° 772 da Avenida Afonso Pena seja fruto dos esforços desmedidos de Afonso Geraldo Caldeira, as origens do Café Nice nos remetem ao Rio de Janeiro e ao Sr. Heitor Resende. Mineiro e dono de espírito empreendedor, Resende foi à capital carioca em fins da década de 30, vindo a conhecer o já consagrado Café Nice da Avenida Rio Branco, reduto onde legendários mestres do samba armavam suas tretas e mutretas. Lá, Pixinguinha, Lamartine Babo, Noel Rosa e Cartola trocavam figurinhas musicais enquanto sorviam cafés, geladas e branquinhas.

Fascinado com o Nice carioca, Resende empolgou-se com a idéia de montar negócio semelhante. Ao saber que uma das lojas abaixo do Hotel Brasil Palace, então em fase final de construção, estava sendo alugada, Heitor Resende edificou seu Nice mineiro, batizando-o Casa de Chá e Leitaria Nice. A Belo Horizonte de então, ainda em crescimento, passou a frequentar a casa com regularidade. Resende viu-se incapaz de administrar um negócio tão frenético e entregou-a, em 1941, aos cuidados de João Caldeira, irmão de Afonso. Este, ainda na calmaria de sua Barão de Cocais, foi chamado por João para ajudá-lo na condução do Nice. Aceitando o pedido, Afonso veio para BH com 26 anos.

O Nice trazia, desde então, ares novidadeiros. Era o primeiro café a ter garçonetes, conta Renato, que há 33 anos trabalha no n° 727 da Afonso Pena. Sete anos após assumir o Nice, João saiu e a loja ficou inteiramente sob o comando de Afonso, que entregou-se apaixonadamente ao negócio. Fechava o café a 1h da manhã e já estava abrindo-o às 5h, cumprindo jornada árdua para sustentar os dez filhos”. (Texto extraído do livro BH de cada um de nós. Crônica: Por trás de cada cafezinho há uma história, de Pedro Moreira Gomides).

Na seara política, o Café Nice é parada obrigatória para os aspirantes a governar o país, estado ou prefeitura. Se não tomar cafezinho, não ganha eleição nem com reza brava. A crônica do futebol também é especialidade, tema diário dos Americanos, Atleticanos e Cruzeirenses, todos eles confiantes na conquista de títulos. São eles que o fazem o Nice virar um verdadeiro campo de futebol, com dribles, caneladas e gols cheios de argumentos mais agudos e ligeiros. Ali só tem craque de bola e de boa língua futebolística.

Quem vem a Belo Horizonte e não vai ao Café Nice, é acometido por uma “maldição” da desatenção e descortesia com nossa gente. Aqui você tem a obrigação de bater seu ponto de prosa, saborear um cafezinho fumegante, pão de queijo e conversa boa. É nesta confraria de amigos do Nice que repousa a essência da cidade. Somos mineiros, meio desconfiados para mostrar nossa prata, nossos metais. Mas a riqueza está nas entrelinhas, à disposição para ser vista pelos olhares atentos e de alma profunda. O Café Nice é como um oásis no turbilhão urbano. Um porto de descanso para refazer as forças, recompor os pensamentos, dar um sorriso, trocar um dedo de prosa. Aqui se formam turmas de várias gerações. Vira e mexe, Deus chama um para tomar um cafezinho junto à mesa da divindade, mas sempre nasce um novo filho ou neto para continuar a tradição. Penso que deveríamos fazer um movimento para criar uma lei de tombamento imaterial desta joia cultural. O Café Nice é nosso, pertence à cultura, ao povo de Minas Gerais, aos belo-horizontinos.

Tenho um lado escutador do inconsciente e do lado direito do cérebro, o economista público. Sou filho de ferroviário. Carrego longas cargas e muita gente dentro do vagão do meu coração. Já fiz baldeação e levei matula para longas viagens do passado. Quanta lembrança boa da estrada de ferro, da Viação Mineira de Ferrovias. Onde estarão os maquinistas para tomar café e contar destas andanças dos trilhos de ferro? Já meu lado economista faz contas, cálculos, não com propósito de ser intruso, mas para revelar o valor das coisas. E fico imaginando a quantidade de cafezinhos são servidos anualmente no Nice. Cheguei a um número aproximado de 19 mil xícaras por ano. Com minha HP, recalculo os 71 anos de história e chego a cifra de mais de 1 milhão de cafezinhos servidos. Cálculo doido, mas imagina quanta prosa foi dita nesse tempo?

O que importa mesmo é ver este cenário repleto de gente, se acotovelando para ganhar espaço no balcão, disputando um pedaço da bancada para tomar a xícara, esquecer o drama da vida ao deliciar lentamente um cafezinho. Nesta hora, tem-se a impressão que o tempo para e emerge um estado de fruição e êxtase. Uma espécie de gozo e nirvana com a cafeína. A companhia dos velhos e novos amigos se completa com a presença das também amigas atrás do balcão, tais como: Soninha, 35 anos de Café Nice; Dora, 30 anos; Rosa, 20 anos; Socorro, Nini e Ana, 19 anos de Nice. Não mesmo importante, Raquel, 7 anos; Paula, Jaqueline e Luiza, 2 anos. E ainda há quem trabalhou durante décadas e aposentaram, como Lucy, 38 anos; Maristela, 30; e a ex-vereadora Ana Paschoal. Todas elas fazem parte de uma grande família que trabalha unida, a qual abro espaço para prestar esta singela homenagem.

Não poderia deixar de citar alguns dos muitos amigos e companheiros desta confraria de amigos do Café Nice: meu tio Paulo, meu pai Plínio Galvão, minha esposa Deborah, Sérgio Coutinho, Alfredo, Ivanir e Margaret. E ainda, os amigos Antônio Carlos, Lilito, Dr. Paulo, desembargador Lúcio, Afonso Paulino, Gervársio Horta, Jardim Ombrósio, Edson (Pituca), Amilcar Martins, João Salgado, Augusto Rocha (Bitoque) e outros. Como esquecer os laboriosos engraxates Bira, Anderson (Bedeu) e Antônio Carlos? Este último deixou nos amigos muita saudade, assim como o bilheteiro Oswaldo. E a banca de jornal da Sandra e Célia? Temos ainda a boa banca de jornal e livraria Riccio, com o senhor Romeu Riccio.

Fato é que depois de tomar este “Santo Café ou Dai-me Luz”, o Nice passou a fazer parte do meu paladar e da minha andança deste da década de 1970, mais precisamente nos idos de 1975, quando iniciava minha jornada de trabalho contínuo como office-boy no escritório de contabilidade e advocacia. Trabalhei para os bancos Mineiro, Unibanco e do Progresso. Tive muitos ofícios: atendente de balcão de padaria, escriturário, analista de crédito, professor de Economia, analista de administração e finanças, diretor de administração, assessor de políticas públicas, economista e no consultório como psicanalista. Agora tenho o prazer de me aventurar como neófito escrivão do cotidiano.

Meu amigo Renato lembra o caso de um senhor do interior que entrou no Café Nice, olhou para o alto, andou de um lado ao outro e perguntou: “Lá no interior, na minha cidadezinha, falaram tanto deste Café que vim ver como era. Afinal tem algo maior lá em cima, ou ele é deste tamanho mesmo? Pelo tanto que falaram dele pra mim, achei que fosse imenso!”. Aí veio a resposta: “É apenas isso, só estes metros de parede. Mas se tornou uma imensidão no coração dos amigos. E essa grandiosidade se espalha pelo lado de fora e vai irradiando mundo afora. Toca a alma e agrega amigos”. É por esse motivo que escrevo esta singela crônica. Pelas amizades tecidas no Café Nice, patrimônio histórico da cidade. Relicário de boa gente.


*Antônio de Pádua Galvão é economista e psicanalista

www.galvaoconsultoria.com.br

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